terça-feira, 16 de dezembro de 2008

exatamente aqui!



O que chamou a atenção foi o som da flauta que mesmo sendo transversal era doce. Sentou na janela do quarto, a brisa compunha a cena fazendo seus longos cabelos indicarem a direção do som. Ali de cima ela podia ver tudo, toda a vizinhança. Os quintais das casas de trás, as fachadas das da frente, e as janelas das que também eram sobrados. As vezes espiava pela fresta da janela por um dia inteiro a rotina de uma casa, gostava de saber como as pessoas agem quando não sabem que estão sendo vistas. Viu aquela briga do casal da frente, a discussão durou três dias, e a reconciliação seis, acompanhou cada capítulo com imenso entusiasmo. Viu quando o cachorro da vizinha morreu, e não tinha ninguém em casa, viu quando eles chegaram e a tristeza. Ouviu e viu os dias que a criança da esquerda a frente gritava chamando o Papai Noel e o vizinho colado aqui a direita respondia ho ho ho, e a menina ficava muda olhando com cara de quem viu assombração, mas feliz. Não comentou com ninguém, agiu como se fosse segredo, e as vezes a menina ia até a janela e chamava novamente por ele.... e ele respondia... e ela saia satisfeita. Hoje todas as janelas estavam fechadas menos essa. A Lua não apareceu nesse dia, mas haviam algumas estrelas, poucas, mas presentes. As nuvens brancas contrastavam com o azul escuro do céu, e também seguiam o som, tomando formas que só para ela faziam sentido. O telhado da casa da frente cobria o terraço da casa do outro lado da rua, onde estavam todos eles tocando e cantando, ela não via, mas ouvia cada nota. Uma voz linda cantava Chico, sua música preferida, numa afinação surpreendente, pensou em ir até lá e tocar a campainha, mas sentiu que o resto também lhe dava muito prazer. Olhar as nuvens, as casas dormindo, o perfume que a brisa trazia, o friozinho da madrugada, tudo se encaixava perfeitamente com a música, viu que queria estar exatamente ali, onde estava. Gostava de ficar sozinha, mesmo sendo sábado. Pensou que poderia estar em milhares de lugares nesse momento nessa cidade grande, cheia de infinitas possibilidades, mas realmente preferia estar ali. A dama da noite floria de novo, flores tão pequenas e tão perfumadas. Olhou em volta e algumas casas já piscavam as luzinhas de Natal. Algumas amarelinhas piscavam desordenadas nas sacadas e janelas de uma casinha bem a direita no fim da rua, e umas vermelhinas e verdes acompanhavam o telhado duas para cá. A esquerda do lado de cá da rua via um Papai Noel inflável preso no muro. Ele não estava nem em cima nem embaixo, estava amarrado bem no meio do muro, flutuando. Ela lembrou da mãe que iluminava a casa toda no Natal. Contornava cada porta por dentro e por fora. Eram luzinhas brancas que piscavam e tocavam música. O pai companheiro como sempre tratava de pregar tudo com seu cuidado especial. E tudo ficava lindo. Iluminado.
De repente a música parou, ouviu a conversa de longe, mas não entedia o que diziam. Ouviu eles entrando na casa e nessa hora, que acenderam a luz de dentro, viu todos passarem pela sala com garrafas, copos, e instrumentos... carron, flauta, chocalho, baixo acústico (grande e lindo, ela ficou hipnotizada durante a sua passagem breve pelo curto espaço da janela), acordeon, pandeiro, e violão. A última a passar que estava sem instrumento nenhum aparente, e devia ser a dona da voz, fechou a janela. Ela olhou a última vez para o céu e pulou para dentro do quarto, deitou e se enrolou no cobertor macio, e fechou os olhos, tinha muitas coisas para pensar agora.