quinta-feira, 12 de março de 2009

episódio 02: A cega.


Entrei no metrô atrasada, correndo, e passei exatamente um segundo antes da porta se fechar como uma guilhotina. Quando a porta se abriu na próxima estação entrou a cega. Ela era japonesa, tinha uns 40 anos, se vestia elegantemente bem com uma calça preta, uma blusa branca, um óculos escuro bem preto encaixado perfeitamente no seu rosto, e uma longa bengala prateada que parecia ter vida. A cega que eu chamei de Cristina, entrou como se pudesse ver tudo e sentou-se. O metrô parou na próxima estação e surpreendentemente lotou, fiquei observando a cega... o que será que estava pensando??? Penso muitas coisas sobre o que vejo, ali naquela hora milhares de informações visuais sem fim... Às vezes não penso nada, só observo... e ela? Ela sempre tem que estar pensando em alguma coisa... mas o que? Se for cega de nascença então... nunca viu um por do Sol, nunca paquerou, nunca viu o Alaska nem por foto. Com o que ocupa sua cabeça??? Tudo o que pensamos e até o que sonhamos a noite é reflexo de nossa visão, não sentimos cheiros no sonhos, sentimos?? Que mundo é esse que ela vive?? Fiquei muito encucada com isso.. eu sempre tive uma curiosidade intrigante sobre os cegos, sempre quero ser seus guias na rua, como naquele filme lindo sabe? Que ela guia o cego e descreve tudo, tudo o que vê em detalhes andando com ele rapidamente pela rua... pega o cego sem ele esperar, e vai falando, falando, falando no seu ouvido quase sussurrando, o deixa diante de um lugar maravilhoso, e parte. Conheci muitos cegos... mas ela era diferente... agia como se enxergasse.
Próxima parada, estação Paraíso, todos se agitam para descer e ela se levanta e aguarda, calma... eu não consegui me aproximar dela por isso só observei. A porta se abriu num tranco e a massa de pessoas espremidas começou a sair... até que aconteceu uma coisa incrível... a cega passava de mão em mão, todos a encaminhavam para a saída, como uma coreografia ensaiada, e ela, parecia uma bailarina rodopiando, ia confiante sendo guiada por várias pessoas que ela nem sabia quem eram, ela passava de mão em mão, de mão em mão... Apressei o passo para acompanhar o destino de Cristina, mas ela desapareceu na multidão... de mão em mão, com seu óculos escuro bem preto encaixado perfeitamente no seu rosto, e a longa bengala prateada dobrada embaixo do braço.

episódio 03: as unhas cor de rosa.

De repente me deparei com as unhas rosas. Elas eram imensas e intensas, não achei nenhuma foto que representasse isso. A mão dona das unhas segurava firme o cano do metrô, e elas pareciam até uma grande listra. Eu nunca tinha visto isso, unhas tão grandes... elas não eram só grandes no comprimento não, não, não... elas eram largas... uma junto a outra mal se mostrava a carne, era como se fosse tudo uma grande unha.
Estão Sé... as unhas deceram do metro,balançando pesadas na mão boba.

episódio 04: a equatoriana



... aguardando a estação para desembarcar, ouvi toda a conversa da moça sentada bem a minha frente. Ela contava para duas amigas a história da equatoriana. A equatoriana de 21 anos resolveu passar o carnaval no Brasil, decidida, arrumou as malas e embarcou no primeiro vôo para SP. No avião sentou-se ao lado do pai da narradora da história. Durante a viagem contou a ele sua aventura, ele assustado com a falta de programação da menina, pois ela não havia reservado hotel, nem nada, e estava chegando em plena sexta feira da carnaval disse a ela que ela deveria ter verificado tudo antes, pois estariam chegando a noite e ela poderia ficar perdida. Desembarcando em SP, o pai se ofereceu ajuda para levar a menina a um hotel provisoriamente, até a manhã seguinte procurarem um local adequado. Ela aceitou e o único hotel que ele conseguiu acomodá-la foi em um na Pç da República. A menina que eu resolvi chamar de Janete resolveu conhecer o carnaval paulista, deixou sua mala no quarto e saiu para a noite paulistana, voltando meia hora depois sem dinheiro, sem documentos, sem cartões e sem nada que tinha dentro da pequena bolsa verde limão. O Pai na manhã seguinte, como combinado, foi resgatá-la e assustou-se com a notícia, ele tinha alertado ela quanto a não sair do hotel...
A menina não tinha dinheiro, não tinha documentos, não tinha nada...
Jair como resolvi chamar o pai, levou Janete para casa, pois até o consulado liberar seus documentos e etc, ela estaria perdida. Janete chegou na Vila Madalena e conheceu Marlene a mãe, Carolina a narradora da história, e Artur o cachorro fox paulistinha que havia sido criado pela família desde pequeno.
Artur não gostou da estrangeira desde o início, mas se adaptaram do jeito deles, ela evitando-o ao máximo e ele latindo loucamente toda vez que a via pela casa. Janete passou o sábado de carnaval fazendo programas com a família. A noite foram ver o desfile das escolas de samba e ela ficou completamente encantada e apaixonada por todas aquelas cores e alegria. Na volta, Carolina arrumou uma cama no seu quarto para acomodar a visita. Na manhã de domingo quando Carolina acordou e Janete não estava no quarto, mas suas coisas ainda estavam lá. Ela não estava em nenhum lugar da casa, nem ela, nem Artur. Já era segunda feira quando encontrei com ela no metrô, e a equatoriana ainda não tinha dado sinal de vida.
Estação Tietê anunciou o motorista, e eu desembarquei.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Fragmentos de mim





Ela até já escreveu o roteiro de um filme, nem ela sabe como, mas o escreveu em apenas dois dias, com indicação de direção e trilha. Foi rápido e fácil naquele momento e ela gostou muito... mas ela gosta mesmo de escrever sobre coisas que de repente lhe vem na cabeça, coisas que ela nunca pensou antes como por exemplo o perfume da torta de maça que a avó fazia quando ela era criança, sendo que tem pouquíssimas lembranças da infância, e nunca teve uma avó que cozinhasse nada. Coisas que realmente só existiram para ela, ou não, como formiga que um dia assaltou o seu armário.... histórias dos recortes de jornal da sua coleção, histórias de pessoas dos trens e metros.
Perfumes que a fazem seguir, e inspiram páginas e páginas. Sabores, olhares, medo, ansiedade...
Beijos.
Pequenos segundos que tornam –se eternos nas escritas cegas.
Parece que cada um desses estímulos reage no seu corpo como um turbilhão de palavras e sensações.
Após meses de silêncio, a curiosidade do enigmático toque confuso, a fez escrever horas naquele ônibus escuro, palavra sobre palavra, quase uma psicografia.
Pensou em escrever sobre como se sentiu com cinco anos ali perdida naquela praia lotada, como sentiu medo, e o corpo vivo e respirando, como se todas as suas células estivesse em total alerta. Passava o olho por toda aquela multidão quase nua, mas não via nada, só seguia a imagem fotográfica da canga amarela manchada de azul apoiada na cadeira e o guarda - sol vermelho e branco. Pensou em escrever também sobre os beijos mascarados e coloridos vistos naquelas pessoas sem nome, sem sexo.
Como um raio laser que passa no seu corpo nu e o desfragmenta, resolveu escrever sobre o dia que se apaixonou perdidamente por um tal de Ernesto desde o primeiro beijo, Ernesto era um homem forte, carreira de advogado sólida, carinhoso, dedicado,
ela o encontrava e seus olhos brilhavam como pedrinhas de brilhante, genuíno,
aqueles dois olhos castanhos escuros e profundos como dois buracos negros onde ela estava prestes a se perder, e se perdeu, se conectavam exatamente e perfeitamente com o beijo macio e demorado de cada encontro.
tudo era perfeito... embora ela fizesse o estilo dura na queda, os pés flutuavam...
Ela já o conhecia tão bem, cada detalhe.
O tempo se passou.... o olhar ficou raso, o beijo breve, e frio, frio, gelado mesmo, a língua fria, a textura seca, mas os pés ainda flutuavam, flutuavam no andar embriagada como em um colchão grosso e macio. Ela pensou: Quem será ele?
O tempo passou, o olhar modificou novamente, as mão voltaram a ficar acessíveis e disponíveis, mais carinhosas, as palavras sussurradas aos ouvidos e a todos os ouvidos voltaram a ser ditas, mas... para ela... não tinham mais importância!
E um dia ela conheceu Leandro, que sempre teve mãos leves e doces, e calmas e amorosas, seu olhar castanho escuro sempre foi um poço sem fim, ela quase não o conhecia, seus pés nunca saíram do chão. E assim foi por tempos e tempos seu declarado amor, mas ela nunca quis saber...
O tempo passou, ela o encontrava esporadicamente em eventos sociais / profissionais, e ele sempre com aquele olhar de artista, que olha e olha, que não perde um só segundo dela, olha todos os detalhes e movimentos, e ela vendo tudo, sorri e parte!
Um dia ele sumiu, Leandro sumiu, e ela sentiu no peito nunca ter se dado a chance de conhecê-lo. O reencontro foi triste, porque ela viu claramente o encanto como um encanto, mas já era tarde!
Ontem ela conheceu você... mas ela não te conhece, nem seu olhar castanho escuro profundo.
Que doce surpresa, o te conhecer sem te conhecer... e sem nada esperar!