
Ouvia a flauta doce do avô da barriga da mãe. O repicado e o som agradável do dedilhado no violão preenchia as tardes ensolaradas na casa 181 da antiga rua 6. Ela poderia ficar ouvindo por horas sentada na escada de mármore gelada, paralisada... Hipnotizada fisicamente, mas a cabeça voava, o coração batia esquisito. Até hoje se fechar os olhos ela pode ouvir como se estivesse dentro dela, guardado para sempre, exatamente como era. Feijão velho com farinha e macarrão... as vezes fica horas e horas pensando, lembrando cada detalhe, cada gesto, cada olhar que já recebeu, cada carinho. As vezes é capaz de lembrar o cheiro... e cada pintinha da careca e rosto, cada ruga... a veia saltada da mão que ela adorava apertar, macia. Olhos de panda. As lembranças são tão vivas que quase matam a saudade, quase... porque essa saudade e sem fim. Cachuchinha, ela ouvia, eu te amo 888, que significa eu te amo infinitamente 3 vezes. Doce. A primeira pessoa e talvez a única que a olhou nos olhos e disse eu te amo sem dizer absolutamente nada. O ritual de todas as noites era:
Açneb ohnioV, emrod moc sueD, moc so sohnijna, moc a iziZ, moc o odúiero, euq méugnin ahnet oledasep men ohnos miur, euq oãn açetnoca adan ed miur. Aob etion roma, et oma 888.
E realmente ninguém entendia, e realmente ninguém precisava entender...
Os filmes de bang bang, a borboleta azul que atravessava a parede e ninguém via a não ser eles, o cachorrinho de pelúcia de orelhas compridas, a fralda amarrada na fralda quando criança, as coxinhas do Sanchupança e as florzinhas amarelas do caminho.... e aquele arco íris... aquele que se via o começo e o fim, lembra?? Lembra? As brincadeiras com a Bê*, as implicâncias, o cobertor azul e o braço do Voinho aqueciam qualquer frio, acolhiam qualquer medo, tristeza.
É casada solteira ou viúva? E logo depois pedia um beijo na careca.
Até que um dia... a pedrinha preta caiu... aquela pretinha que morou ali no seu umbigo por anos e anos caiu. Ela procurou por toda parte, procurou e procurou, mas, a contagem regressiva tinha começado...
Saiu do quarto do hospital sem rumo, há dias já estava ali sem saber o que fazer e o que pensar... na verdade pensava mil coisas e nada ao mesmo tempo, parecia que a cabeça pensava tanto, que nem ela mesma conseguia saber o que. Cada passo que dava seu coração apertada e apertava mais. Resolveu voltar. Sentiu pressa. Pôde ver o último suspiro segundos depois de invadir o quarto em silêncio, como se estivesse sido esperada. Uma profunda inspiração sem fim... e o ar esvaziou sozinho e aos poucos, sem compromisso algum de encher os pulmões novamente. Ninguém disse ou fez absolutamente nada. Ela chorou por anos a morte de seu Voinho, antes mesmo da pedrinha preta cair, e se calou quando realmente aconteceu. Um pedacinho valioso dela morreu também naquele dia, nunca mais encontrou ninguém que tenha merecido sequer uma lágrima. Nunca mais viu outros olhos como aqueles que a cuidaram por tanto tempo, mas ela sabe que eles ainda a olham, e nessa hora, que é como um suspiro... sente seu coração completo de novo.
Eu te amo 888 meu amor! Diz ela.
Até.
* Benedita Cardoso de Melo. Conhece a minina desde que ela tinha 6 meses. Lembra dela aos 5, 6 anos brincando no cesto de roupa para passar enquanto ouvia o Jonas Donizette falando e falando no radinho a pilha. Lembra dos banhos no tanque de lavar roupa nos dias de calor e do banho de mangueira no dia de lavar a Caravan diplomata dourada. A minina comia batom quando criança, não o 24h que o gosto não era bom, mas sim aquele marrom que realmente tinha gostinho de chocolate, comia beterraba para ficar com os olhos azuis como os da prima, e parou de comer sal com medo de ficar careca. Os pãezinhos em formato de coração cresciam no forno enquanto contava para a minina suas histórias de terror, não aquelas de inventadas, mas sim aquelas que ela mesma presenciou. A minina nunca mais esqueceu o lobisomem na porteira do sítio, e até hoje procura um raio enterrado.