sábado, 18 de outubro de 2008

A chama violeta


Ouvia a flauta doce do avô da barriga da mãe. O repicado e o som agradável do dedilhado no violão preenchia as tardes ensolaradas na casa 181 da antiga rua 6. Ela poderia ficar ouvindo por horas sentada na escada de mármore gelada, paralisada... Hipnotizada fisicamente, mas a cabeça voava, o coração batia esquisito. Até hoje se fechar os olhos ela pode ouvir como se estivesse dentro dela, guardado para sempre, exatamente como era. Feijão velho com farinha e macarrão... as vezes fica horas e horas pensando, lembrando cada detalhe, cada gesto, cada olhar que já recebeu, cada carinho. As vezes é capaz de lembrar o cheiro... e cada pintinha da careca e rosto, cada ruga... a veia saltada da mão que ela adorava apertar, macia. Olhos de panda. As lembranças são tão vivas que quase matam a saudade, quase... porque essa saudade e sem fim. Cachuchinha, ela ouvia, eu te amo 888, que significa eu te amo infinitamente 3 vezes. Doce. A primeira pessoa e talvez a única que a olhou nos olhos e disse eu te amo sem dizer absolutamente nada. O ritual de todas as noites era:
Açneb ohnioV, emrod moc sueD, moc so sohnijna, moc a iziZ, moc o odúiero, euq méugnin ahnet oledasep men ohnos miur, euq oãn açetnoca adan ed miur. Aob etion roma, et oma 888.
E realmente ninguém entendia, e realmente ninguém precisava entender...
Os filmes de bang bang, a borboleta azul que atravessava a parede e ninguém via a não ser eles, o cachorrinho de pelúcia de orelhas compridas, a fralda amarrada na fralda quando criança, as coxinhas do Sanchupança e as florzinhas amarelas do caminho.... e aquele arco íris... aquele que se via o começo e o fim, lembra?? Lembra? As brincadeiras com a Bê*, as implicâncias, o cobertor azul e o braço do Voinho aqueciam qualquer frio, acolhiam qualquer medo, tristeza.
É casada solteira ou viúva? E logo depois pedia um beijo na careca.
Até que um dia... a pedrinha preta caiu... aquela pretinha que morou ali no seu umbigo por anos e anos caiu. Ela procurou por toda parte, procurou e procurou, mas, a contagem regressiva tinha começado...
Saiu do quarto do hospital sem rumo, há dias já estava ali sem saber o que fazer e o que pensar... na verdade pensava mil coisas e nada ao mesmo tempo, parecia que a cabeça pensava tanto, que nem ela mesma conseguia saber o que. Cada passo que dava seu coração apertada e apertava mais. Resolveu voltar. Sentiu pressa. Pôde ver o último suspiro segundos depois de invadir o quarto em silêncio, como se estivesse sido esperada. Uma profunda inspiração sem fim... e o ar esvaziou sozinho e aos poucos, sem compromisso algum de encher os pulmões novamente. Ninguém disse ou fez absolutamente nada. Ela chorou por anos a morte de seu Voinho, antes mesmo da pedrinha preta cair, e se calou quando realmente aconteceu. Um pedacinho valioso dela morreu também naquele dia, nunca mais encontrou ninguém que tenha merecido sequer uma lágrima. Nunca mais viu outros olhos como aqueles que a cuidaram por tanto tempo, mas ela sabe que eles ainda a olham, e nessa hora, que é como um suspiro... sente seu coração completo de novo.
Eu te amo 888 meu amor! Diz ela.
Até.

* Benedita Cardoso de Melo. Conhece a minina desde que ela tinha 6 meses. Lembra dela aos 5, 6 anos brincando no cesto de roupa para passar enquanto ouvia o Jonas Donizette falando e falando no radinho a pilha. Lembra dos banhos no tanque de lavar roupa nos dias de calor e do banho de mangueira no dia de lavar a Caravan diplomata dourada. A minina comia batom quando criança, não o 24h que o gosto não era bom, mas sim aquele marrom que realmente tinha gostinho de chocolate, comia beterraba para ficar com os olhos azuis como os da prima, e parou de comer sal com medo de ficar careca. Os pãezinhos em formato de coração cresciam no forno enquanto contava para a minina suas histórias de terror, não aquelas de inventadas, mas sim aquelas que ela mesma presenciou. A minina nunca mais esqueceu o lobisomem na porteira do sítio, e até hoje procura um raio enterrado.

10 comentários:

lili disse...

Bunitinha...
tá saudosa, amiga...?
beijinho
vai lá me visitar,tb...

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

se você no céu, se você no céu
conseguir entrar
faça um buraquinho, faça um buraquinho
para eu passar
se você no céu conseguir entrar, faça um buraquinho para eu passar
aê aôôô aê aôôô
se você do inferno, se você do inferno
não escapulir
tape o buraquinho, tape o buraquinho
para eu não cair
se você do inferno não escapulir, tape o buraquinho para eu não cair
aê aôôô aê aôôô

Unknown disse...

eita saudade... saudade boa.

Anônimo disse...

Ola amigo..so passei pra deixar um oi..nao tive tempo para ler todo o conto, pela extensaão dele e pela minah falta de tmepo, por isso nao farei um comentário a respeiro, so digo para continuar postanto, escrever faz be a alma...se quiser dar um pulo la no letrinhas e letrinhas, fique a vontade..

araço

Fernanda Soto disse...

Linda....e simplesmente lindo tudo isso!!! que delícia ler essas coisas...vc é maravilhosa..uma alma que brilha e ilumina a vida das pessoas!
te amooo....muita saudade
Fê Soto

Cássia disse...

Oi Cá, passei por aqui para responder seus comentários e me deparo com um blog lindo, lírico, poético!
Amei!
Me passe seu e-mail para combinarmos os detalhes da sua caveirinha - cor, numeração, prazo...
E continue me visitando para saber o que temos aprontado.
Beijinhos,

Ana Lucia disse...

Linda, linda, linda. Só quem viveu tem no coração lembrança tão maravilhosa. Valeu a pena!

Lauramaria disse...

Filha,acho maravilhosa,você nem imagina quanta saudades,se pudesemos voltar o tempo que delícia seria.Você escrece com tanto amor e acho que só nos sabemos como o Voinho nos conduziu nossas vidas,com aquele cheitinho dele.Qdo batia na porta do guarto e dizia É o sombra,ou você está linda mas acho que esse sapato não está combinando não tem outro.Filha como nos faz falta.Mas tenho certeza que um dia vamos nos encontrar juntos de seus irmâo e de sua avó tenho certeza nada acaba assim.
Te amo muito.

Roberta disse...

Cá,sem palavras... só nós sabemos o que foi viver e ser educadas por este grande companheiro...que falta ele faz nas horas difíceis,onde só o seu olhar tinha o poder de acalmar o coração,saudade,saudade.esteja bem voinho,esteja com Deus.